Confiar não é tarefa fácil, especialmente quando já experimentamos o gosto amargo de uma traição. A natureza humana é frágil e, por razões diversas, não é confiável, na maioria das vezes. Amigos e familiares falham e nos decepcionam, pessoas queridas erram. Quanto maior for o carinho e dedicação que oferecemos a alguém, tanto maior será a dor diante das decepções, por ela causadas. Os desconhecidos e anônimos não possuem esta capacidade de nos ferir, mas os íntimos sim.
Imaginar que sairemos ilesos dos relacionamentos é ignorar a essência deles. Já que, foram estrategicamente desenhados para nos aprimorar. Não somos completos em nós mesmos. Por isso, precisamos do outro. No outro reside um universo que ignoramos por completo. As mesmas coisas que admiramos passam a ser barreiras quando a confiança é traída. As comparações surgem e tentamos medir o grau de dedicação envolvido na relação.
Essa dinâmica das relações humanas é universal e cíclica. Não por acaso, entre os discípulos de Jesus, existia um traidor. Jesus incluiu em seu círculo mais íntimo uma pessoa que o trairia. Entregou-lhe, inclusive, a responsabilidade de cuidar das finanças. Esta talvez tenha sido a maior prova de que Judas exercia uma função de confiança, ou pelo menos de responsabilidade. Jesus não tinha receio da traição, e ensinou-nos a lidar com ela.
Traição, um inimigo mortal
Ser traído é doloroso e pode nos aleijar para sempre. Nossa reação diante dos desapontamentos da vida determina nosso futuro. Quando ficamos presos a elas e negamos ao outro nosso perdão, estacionamos. Existe um poder de atração na ofensa que nos conecta ao ofensor de forma definitiva. Essa atração só é rompida quando exercemos o perdão.
O perdão em última análise nada mais é que o reconhecimento de que existe em nós também a capacidade de errar. Isto é, de que nossa matéria-prima é a mesma. O que errou conosco, muitas vezes não o fez de forma intencional, e mesmo que o tenha feito, vive um engano. Erra tremendamente quem pensa que trair é uma opção.
Portanto, seguir em frente é imperativo nestes momentos. Lidar com a dor, envolve escolher perdoar. Porque, perdoar antes de ser a decisão acertada, é o único meio de avançar. Os que escolhem acolher a ofensa envenenam-se diariamente. Diz-se de alguém que não perdoa, que se assemelha a uma pessoa que toma doses diárias de veneno, desejando secretamente que seu ofensor morra. A morte lenta e gradual, no entanto, acontece dentro de nós.
Com certeza é um dos grandes desafios de nossa existência não desistir dos relacionamentos. Eles nos machucam e nos completam. Temos oportunidade de aprender com eles e amadurecer em nossa caminhada, à medida que permitimos que pessoas se aproximem. Mas, corremos o risco de levantar muralhas, que ao invés de nos proteger nos isolam.
Um pouco de C S Lewis – Confiar
C S Lewis explorou muito o tema dos relacionamentos em todas as suas obras. Ele entendeu que era impossível relacionar-se com Deus sem desvendar as dinâmicas do relacionamento entre seres da mesma espécie. O texto abaixo é um extrato de seu livro – A última noite do mundo. Com este texto encerro o post desta semana:
“…Há ocasiões em que podemos fazer tudo o que uma criatura precisa se ela confiar em nós. Ao tirar um cachorro de uma armadilha; ao tirar o espinho do dedo de uma criança; ao ensinar um menino a nadar ou ao resgatar alguém que não sabe nadar; ao ajudar um alpinista novato assustado a ultrapassar um lugar desagradável em uma montanha. O único obstáculo fatal pode ser a desconfiança deles.
Estamos pedindo a eles que confiem em nós em franca oposição a seus sentidos, a sua imaginação e a sua inteligência. Pedimos a eles que creiam que o que é doloroso aliviará sua dor e que aquilo que parece perigoso é sua única segurança. Pedimos a eles que aceitem aparentes impossibilidades:
- que mover a pata mais para dentro da armadilha é a maneira de sair dela;
- que machucar muito mais o dedo vai fazer o dedo parar de doer;
- que a água, que é obviamente permeável, possui sua resistência e apoiará o corpo;
- que segurar o único apoio ao alcance não é a melhor maneira de não afundar;
- que subir ainda mais e ir para uma borda mais exposta ajuda a não cair.
…Às vezes, por causa da incredulidade deles, não podemos fazer grandes obras. Mas, se formos bem-sucedidos, conseguiremos porque eles mantiveram fé em nós contra evidências aparentemente contrárias. Ninguém nos culpa por exigir tal fé. Ninguém os culpa por darem-na. Ninguém diz depois que deve ter sido um cão, ou uma criança, ou um menino não inteligente por ter confiado em nós.
…A confiança total é um ingrediente nessa relação – essa confiança não poderia ter espaço para crescer, exceto onde há também espaço para dúvidas. Amar envolve confiar no amado além da evidência, mesmo contra muitas evidências.
Nenhum homem que é nosso amigo acredita em nossas boas intenções somente quando elas são provadas. Nenhum homem que é nosso amigo terá pressa em aceitar provas contra elas. Tal confiança, entre um homem e outro, é de fato quase universalmente louvada como uma beleza moral, não culpada de ser um erro lógico. E o homem suspeito é culpado por uma mesquinhez de caráter, não admirado pela excelência de sua lógica.”