Na vida alguns papéis se invertem de tempos em tempos. O que ganhava perde, quem ensinava aprende e assim por diante. Estas inversões não são negativas em sua essência, se soubermos fazer a leitura correta do que representam. Neste ano experimentei uma inversão de papéis com meu pai. Ele que, durante anos, foi responsável por meu sustento, educação, segurança e cuidados, necessita que eu assuma, agora, este papel na vida dele. Como uma pessoa independente que sempre foi, recusou-se a admitir que precisava de ajuda. Resistiu enquanto pode a todos os desafios e limitações que o Alzheimer impôs à sua rotina. A higiene passou a não ser importante, assim como desistiu de saber em que dia da semana, mês ou ano estava.
Tudo foi desmoronando lentamente ao seu redor, até que tivemos que intervir. Mas, não estava convencido de que a hora havia chegado. Gritou, esperneou, argumentou e por fim perdeu o controle daquilo que tão tenazmente tentava manter – sua autonomia. Uma decisão difícil para ele e para nós. Foi e tem sido dolorido vê-lo esquecendo de coisas básicas que fazia com tanta desenvoltura. Hoje precisa de ajuda para alimentar-se, para ir ao banheiro e para tomar banho (quando concorda em tomar). Continua sem saber que dia da semana é, porém hoje não coloca sua vida em risco, tentando deslocar-se para os locais que costumava frequentar. Quando relata sua rotina, transita por tempos que se misturam. Ora está trabalhando, ora de férias, sem contudo, relacionar-se com a dura realidade de que está institucionalizado.
Uma pandemia
Além do inimigo que foi chegando lentamente e invadiu seu mundo e o nosso, uma pandemia impiedosa imprimiu restrições de convívio que o deixaram ainda mais confuso. Não bastasse a troca de uma rotina por outra, ele agora não poderia receber visitas. O nível de angústia aumentou ainda mais quando o vírus entrou em cena e sem dó nem piedade obrigou-o a ficar em isolamento. Estava literalmente encurralado em um mundo confuso e bem barulhento. O ruído não era oriundo dos carros e ônibus que sempre o incomodaram, vinha das perguntas sem resposta que ecoavam dentro dele. Porque, seu mundo interior estava confuso e turbulento. Um mundo desconhecido no qual estava preso e que não fazia sentido algum.
Lutar contra apenas um inimigo já era difícil, agora eram dois em um mesmo momento, o que tornava a guerra ainda mais injusta. Uma verdadeira covardia, já que, eram dois contra um. Contudo, ele reuniu todas as forças e lutou bravamente contra o último inimigo, quase que sem se abalar. Precisou sim de internação e da ajuda de alguns medicamentos. Mas, mais uma vez reivindicou inconscientemente liberdade. E, assim que o vírus deu uma trégua, voltou para a companhia dos profissionais que hoje cuidam dele. Pessoas que ele confunde com familiares e até ex-namoradas, eventualmente. São nossos olhos e ouvidos neste momento tão desafiador. Não teríamos conseguido chegar até aqui sem a ajuda e apoio deles.
Os papéis invertidos
Nosso papel hoje é o de cuidar das contas, para que receba o tratamento que o deixa mais organizado e feliz. Os contatos telefônicos são rápidos e esquecidos por ele em questão de minutos. Não possui mente para guardar as informações que recebe. Contudo, o passado garante que ainda lembre de nossa voz e imagem. Sabemos que aos poucos sua capacidade de interagir conosco tende a diminuir. Infelizmente chegará o dia em que não saberá quem somos. Mas, até lá, a gente repete quantas vezes for preciso o que ele estiver perguntando e a informação que queremos que ele tenha. Nossas conversas são quase uma ficção. Transitamos por épocas de sua e nossa infância na mesma conversa, como se tivéssemos participado com ele de todos eventos.
Por isso, estes contatos eventuais beneficiam mais a nós do que a ele. Saber que está limpo, alimentado e sem dor já é um conforto. Estas eram as preocupações que tinha conosco quando éramos crianças. Inegavelmente, hoje são as nossas com ele. Ele é a nossa criança, um bebê que reclama da dor causada pela remoção de um esparadrapo, como se fosse a causada por uma cirurgia profunda. Uma criança que cuidou de outras cinco e se despede da vida como criança. Estar ao lado dele nesta hora é tentar diminuir a angústia e ansiedade que o deixam tão impotente. Sente-se preso em um corpo que tem disposição para longas caminhadas, cuja mente não registra nem a origem e nem o destino que pretende percorrer. A vida perdeu muitas cores e nuances e sofremos junto ao vê-lo despedindo-se dela desta forma.
O pai perfeito
Ele não foi um pai perfeito. Errou e foi meu herói e bandido, como diz a letra da música de Fábio Júnior. Não errou porque era pai, errou porque é ser humano. Afinal, todos nós erramos. Certamente, há quem decida contabilizar erros e não acertos, porque escolheu ver o copo meio vazio e não meio cheio. Não é o meu caso, escolho o copo meio cheio sempre. Fez por nós, os filhos que teve, mais do que recebeu. Já que não carrega em sua certidão de nascimento o nome do pai biológico. Nem herdou dele o sobrenome, que hoje também é meu. Não recebeu carinho e afirmação da figura paterna, tendo que repartir conosco o que não tinha estocado dentro de si. Adquiriu esta capacidade de nos oferecer proteção e amor ao olhar pela primeira vez nosso frágil rosto e nos pegar no colo. Foi responsável pela construção do teto, que transformou-se no piso, sobre o qual cada um de nós partiu para viver a vida.
Sem estudo, e com muita determinação e perseverança; alimentou e educou os filhos. Agora é nossa vez de cuidar dele. Não se trata de uma obrigação e sim de um privilégio. O sacrifício que fez para não deixar a peteca cair; agora é nosso. Neste dia dos pais, minha homenagem é para ele. O único pai que é meu e a quem amo. Aquele que fez por mim muito mais do que consigo fazer por ele. Estamos nos esforçando para garantir dias em que o ambiente externo o ajude a focar no que ainda consegue extrair da vida. Ele é um guerreiro, sempre foi. Não será agora que desistirá da luta e das batalhas que trava. Minha admiração, carinho e gratidão neste dia é para ele. Para todos os pais que estão presentes ou que não podem estar conosco, um FELIZ DIA DOS PAIS.
“A criança é o pai do homem.” William Wordsworth