Um discurso é contraditório, não quando é desprovido de coerência apenas, mas quando não reflete sua prática. Ou seja, ainda que a fala seja bem estruturada e não possua elementos paradoxais, ela pode bem ser considerada incoerente. Pois, a estruturação de um discurso coerente depende de uma mescla de aspectos. Já que além da capacidade de comunicar uma mensagem com clareza, ele precisa ser experienciado. Porque o que mais agrega contradição a uma fala não são as ideias mal elaboradas, e sim a incompatibilidade delas com quem as expressa. O discurso mais coerente e coeso será o que reflete a vida de quem o proclama.
Aliás, a vida sempre falará mais alto do que qualquer discurso, seja ele contraditório ou não. Nossa língua é um órgão capaz de gabar-se de grandes feitos, assim como pode nos enterrar em um poço de desânimo. Podemos usá-la para convencer outros e quem sabe a nós mesmos de que somos capazes, quando nem sempre isso representa a realidade. Assim como, podemos ser convencidos por discursos inflamados a respeito do quão insignificantes somos, sem que carreguem verdade alguma. O que verbalizamos é uma parte de nossa comunicação, mas não é o todo. Nossa expressão corporal fala; assim como falam nossas ações e escolhas.
Aquilo que consideramos prioridade será aquilo com o que gastamos mais tempo e recursos. Portanto, quando dizemos que amamos algo ou alguém e esta declaração não é respaldada por ações, trata-se de um discurso contraditório. Nossa vida possui muitas contradições e pouco nos damos conta delas. Elas são claramente percebidas por quem convive conosco, mas raramente identificadas por olhares casuais e desatentos. Gostamos de dar nomes diferentes para cada um destes discursos, maquiando sua verdadeira essência. A verdade é que somos frágeis e muitos não suportam a realidade de lidar com essa pequenez. Infelizmente, optam pela superficialidade sempre que ser verdadeiro pressupõe acessar áreas doloridas.
“Suas atitudes falam tão alto que eu não consigo ouvir o que você diz.” Ralph Waldo Emerson
O confronto necessário
Cada ser humano é composto por um universo de experiências que modelam seu interior. É de lá que partem as reações e escolhas que fazemos. Nosso olhar é influenciado diretamente por estas gavetas secretas que ninguém sem permissão acessa; por vezes nem nós mesmos. São lugares embolorados, fétidos, úmidos e em geral muito doloridos. Todos nós temos ou tivemos algum destes lugares dentro de nós. Eles nascem de alguma experiência traumática ou da soma de muitas delas. Seja qual for a proporção que este lugar ocupe, acaba minando e contaminando quem somos. Pois, assim como um pouco de sujeira contamina toda água de um copo e não apenas parte dela, de maneira idêntica estas situações afetam todo nosso ser.
Alguns pretendem ignorar a existência destas zonas de conflito e por vezes sufocam suas emoções por anos. Mas as proporções aumentam consideravelmente sempre que negligenciamos a urgência e importância que devemos dedicar a este tipo de assunto. A extensão dos danos pode ser minimizada se o diagnóstico for precoce, permitindo tratamento adequado. O mais importante é saber que ninguém pode fazer isso em nosso lugar. Ou seja, temos que ter valentia de escolher faxinar nosso interior, removendo todo lixo acumulado.
É perigoso permitir que explosões ocorram a partir destes lugares. Pois as chances de espalharem lixo sobre pessoas e ambientes diversos é muito grande. Nosso subconsciente exerce um papel muito importante em nossas reações. Porque, é de lá que partem os medos, inseguranças, raiva, descontrole e todo comportamento que somos incentivados a abafar e reprimir. Contudo, quanto mais represados estiverem estes sentimentos, tanto menos liberdade temos de ser quem somos de fato. Não significa dizer que temos permissão ou que seria saudável extravasar sem critério tais emoções. O correto é reconhecer a existência delas e depois lidar com a origem de cada uma delas, impedindo-as de proliferarem.
“Quando o coração pode falar, não há necessidade de preparar o discurso.” Gotthold Lessing
O discurso coerente
O discurso coerente nasce quando o que nosso corpo e nossa boca falam se complementam. Quando a dor é reconhecida e revelada no gemido ou no grito e quando a tristeza se manifesta sem a carga da culpa. Não temos obrigação de estar sempre felizes, assim como não devemos fingir contentamento quando nosso interior está vazio. Um coração alegre aformoseia o rosto e nenhuma maquiagem é tão eficiente como a esperança que carregamos. Toda tentativa de disfarçar o cansaço ou a desilusão com roupas, atividades ou com uma fala otimista não será bem sucedida. O disfarce dura pouco, especialmente quando estamos rodeados de pessoas que nos conhecem de fato.
Deixar-se conhecer de fato é outro grande desafio. Já que confiar nossos sentimentos e permitir que vejam quem somos exige valentia. Não é sábio expor nosso interior sem critério, mas é igualmente maléfico fechar-se completamente. Os relacionamentos que temos deveriam ser um apoio nos momentos de conflito e não simplesmente um convívio fundamentado em trocas vazias e interesseiras. Nem todos conquistaram o direito de acessar nosso interior, contudo precisamos de um grupo seleto de pessoas com quem possamos contar. Só assim nosso discurso não será contraditório. Isto é, a contradição é eliminada de dentro para fora, com apoio de quem nos ama e conhece. Inevitavelmente a incoerência será suprimida quando não tivermos receio de lidar com o que nos desequilibra e oprime.
O pior cego é aquele que não quer ver. Não podemos forçar e nem seria legítimo exigir que as pessoas sejam honestas consigo mesmas. Contudo, o tempo se encarrega de revelar os contrastes de nosso discurso e do daqueles que nos rodeiam. Pior do que expressar um discurso contraditório é deixar-se enganar por ele. Ou seja, permitir que a dor e o desequilíbrio interno suprimam nossa espontaneidade e roubem nossa identidade. Não somos resultado de um experimento fracassado ou de um amontoado de experiências negativas. Temos capacidade de escolher o que abrigamos e nutrimos. Por isso, só proclama um discurso contraditório aquele que aceita esta versão de si mesmo, sem questioná-la, e não luta contra rótulos, que não o representam.
“Nem a contradição é sinal de falsidade nem a falta de contradição é sinal de verdade.” Blaise Pascal