“É assim a vergonha da mulher cujas mãos ocultam o sorriso, pois os dentes são ruins, não o grandioso ódio a si mesma que leva alguns a lâminas ou comprimidos ou a um mergulho do alto de belas pontes por mais trágico que seja. É assim a vergonha de ser ver, de ter vergonha de onde você mora e daquilo que o contracheque de seu pai permite que se coma e se vista. É assim a vergonha dos gordos e dos carecas, o insuportável rubor da acne, a vergonha de não ter dinheiro para a refeição e de fingir que não se tem fome. É assim a vergonha da doença oculta – doenças caras demais para se arcar, que oferecem apenas uma passagem gélida de ida. É assim a vergonha de ter vergonha, o nojo diante do vinho barato que foi bebido, da lassitude que faz com que o lixo se acumule, a vergonha que lhe diz que existe outra forma de vida, mas que você é tola demais para encontrá-la. Assim é a vergonha real, a maldita vergonha, a vergonha chorosa, a vergonha criminosa, a vergonha de saber que palavras como glória não fazem parte do seu vocabulário, embora entulhem as bíblias que você ainda está pagando. Assim é a vergonha de não saber ler e de fingir que sabe. Assim é a vergonha que provoca medo de sair de casa, a vergonha dos cupons de desconto no supermercado, quando o vendedor demonstra impaciência enquanto busca o troco. Assim é a vergonha da roupa de baixo suja, a vergonha de fingir que seu pai trabalha num escritório como Deus pretendia para todos os homens. Assim é a vergonha de pedir aos amigos que a deixem diante de uma bela casa do bairro e de esperar nas sombras até que partam antes de caminhar até a desolação de seu casebre. Assim é a vergonha por trás da mania de possuir coisas, a vergonha de não ter calefação no inverno, a vergonha de comer ração para gatos, a vergonha profana de sonhar com uma casa e um carro novos e a vergonha de saber como são mesquinhos tais sonhos.” Vern Rutsala
Todos sentem vergonha
Embora a vergonha seja um sentimento universal, ela manifesta-se de formas variadas e raramente é catalogada como tal. Ou seja, gostamos de mascarar nossas reações e medos, classificando-os com nomes mais atrativos. Com isso, contribuímos para o anonimato da vergonha, empoderando-a. Ela se beneficia tanto do anonimato, quanto da crença que só nós lidamos com este desafio. Nada poderia estar mais longe da verdade do que esta afirmação.
Porque a vergonha é algo intrínseco em nossa natureza. Por isso, ela pode ser a mola propulsora que nos inquieta e nos faz buscar superação. Mas, pode também, transformar-se em uma emoção paralisante. Pois o constrangimento que ela promove, especialmente se está oculta, só pode ser eliminado quando confrontado. Já que, sua camuflagem preferida é a mentira de que pode ser eliminada com conquistas.
Pois, uma vitória, por mais legítima que seja, quando alicerçada na vergonha, produz orgulho, altivez. Porque, é inevitável que alguém que prospere em suas iniciativas, tentando livrar-se de algum estigma, pense de si mesmo além do que convém. Inegavelmente, toda distorção que o embaraço produz não pode ser corrigida com uma conquista. O vexame associado a qualquer acontecimento passado ou presente, não é acobertado facilmente. Podemos fazer tentativas honestas de maquiá-lo com episódios de superação, mas eles não são suficientes para corrigir estas distorções.
Vergonha, envergonhada
A arma eficiente contra qualquer vestígio deixado pela vergonha é a vulnerabilidade. Pois, quando expomos a maneira como nos vemos ou os rótulos que recebemos e que nos mutilam, desestruturamos o principal alicerce da vergonha. Isto é, não existe estratégia mais apropriada para desmascará-la do que a exposição do que ela insinua. Muitas pessoas cometem verdadeiras atrocidades tentando livrar-se da dor emocional causada pela vergonha. Elas se auto sabotam e assumem identidades que não correspondem a quem são de fato. Um dos piores danos causados por este tipo de postura, é que ela limita e anula nosso potencial.
Porque todo ser humano possui capacidade de desenvolver-se, crescer e conquistar objetivos. Sem uma perspectiva de vida, nosso dia-a-dia fica maçante e insuportável. Certamente a vergonha não é a única vilã, mas ela acoberta nossos temores e a preocupação excessiva que temos com nossa imagem e com a opinião do outro. Pois, o fato de não reconhecermos nosso potencial e capacidade de superação fortalece a apatia. De maneira idêntica potencializa a sensação de impotência diante de fatos corriqueiros.
Portanto, desmascarar a vergonha é decidir enfrentá-la, expondo as correntes que nos mantêm cativos por anos. Muitos não experimentam nenhum nível de liberdade, pois são reféns de traumas e memórias que foram construídas sobre um alicerce mentiroso. Por isso, quando decidimos assumir posição e o protagonismo de nossa vida, um dos inimigos que precisamos derrotar e denunciar são estes segredos que a vergonha nos fez guardar a sete chaves.