Em tempos difíceis nossa essência é testada e exposta. A pressão externa ou interna revela nossas entranhas. Nossos valores são testados, bem como nosso senso de comunidade e autopreservação é medido. Quando o que está em jogo é nossa integridade e nosso espaço é ameaçado, temos a tendência de usar as armas que temos. No entanto, nem todas elas são legítimas e adequadas. O evento do Covid-19, que desencadeou esta pandemia mundial, pegou a todos de surpresa. Alguns países e comunidades talvez estivessem melhor equipados ou mais acostumados a mobilizarem-se em tempos de crise. Mas o fato é um só, todos fomos convocados a sacrificar um pouco de quem somos e do que temos.
O confinamento não é fácil ou prazeroso. Ele foi abraçado por alguns com altruísmo e estavam convencidos que podiam expressar empatia com os que se encontravam nos grupos de risco. Contudo, alguns se sentiram violentados em sua liberdade e acharam que tinham direito de protestar. A democracia oferece oportunidade e torna legítima toda forma de expressão. Mas, em cada iniciativa ou manifestação, um pouco de quem somos de fato, veio para superfície. Não se trata apenas de dividir angústias e medos, ou de demonstrar solidariedade e revolta. O ser humano tem e sempre terá, em tempos de crise, a chance de se fechar em seu egoísmo ou de abraçar o outro e repartir o que tem.
Inegavelmente atitudes e escolhas altruístas emocionam e inspiram. Assim como, os atos de aproveitadores inescrupulosos agridem e chocam. A verdade é que o ser humano terá sempre diante de si a chance de escolha. Podemos nos reinventar e sair de nossa crise individual e comunitária melhores, ou piores. Sempre será uma escolha pessoal, pois, não nos é facultada a oportunidade de terceirizar a tarefa. A cada um foi concedido livre arbítrio e escolhemos diariamente se olhamos para o copo meio vazio ou meio cheio. Não se trata apenas de ser otimista ou pessimista. É uma questão que envolve a essência da vida. Ou seja, o motivo principal pelo qual existimos.
Tempos de dar exemplo
No mundo cristão, que comemora neste final de semana a Páscoa, o exemplo de Jesus é a base sobre a qual edificamos nossas escolhas. Ele abraçou a cruz, não porque precisasse dela, mas pelo amor que tem pela humanidade. Ele sendo Deus, assumiu a forma humana, identificando-se com nossa fragilidade. Foi deste lugar de fraqueza e esvaziamento que Ele estendeu as mãos para todo aquele que sofre e que se percebe como alguém incapaz de prosseguir sozinho. Ou seja, os que reconhecidamente assumem ser criatura, que necessita da intervenção e ajuda de um Criador. Ao reconhecerem nEle seu exemplo, abraçam também o entendimento que precisam carregar sua cruz.
No entanto, ao contrário do que muitos pensam, a cruz não é uma situação externa ou uma dificuldade que enfrentamos. Nem tão pouco é o que uma pessoa representa em nossa vida. A cruz é um lugar de morte do nosso eu. Assim como aconteceu com Jesus, é ali que nossa vontade morre para que outros se beneficiem desta morte. A cruz mata nosso egoísmo, nossa independência, nossa ótica limitada. A cruz viola nossa integridade e expõe nossas entranhas. Ela vem acompanhada de dor e sofrimento, não por erros cometidos ou falhas que cobram a conta de uma dívida inquestionável.
A dor da cruz é causada pela entrega consciente e voluntária de quem somos e do que temos; em favor do outro. Muitos profissionais da saúde têm assumido sua cruz nestes dias. Outros tantos, de forma variada e em áreas distintas têm feito sacrifícios silenciosos e anônimos para servir ao outro com o que possuem. Dividindo quem sabe um prato de comida ou até um teto. Uma máscara, uma ida ao mercado, um sorriso à distância, uma ligação para dar oi. Os pequenos gestos são valorizados e representam um oásis no deserto que alguns enfrentam. A aridez de algumas situações pode ser amenizada quando um de nós escolhe abraçar a cruz.
A páscoa diária
A páscoa é sim um evento anual celebrado na comunidade cristã ao redor do mundo. Com costumes variados e rituais específicos; é a lembrança da morte sacrificial do Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. Mas todo discípulo verdadeiro de Jesus é convidado por Ele, a tomar sua cruz e segui-Lo. Não se trata de uma opção, é antes um pré-requisito para todo aquele que reconhece nEle o Caminho, a Verdade e a Vida. Nossa fé nEle não pode ser teórica, ela precisa se transformar em ação. Os tempos de crise são especialmente oportunos para abraçarmos a cruz.
No caminho que Jesus trilhou até o Calvário, Ele não revidou as ofensas que lhe faziam. Tão pouco se justificou diante dos que O acusavam de crimes que não havia cometido. Igualmente, não ofendeu-se com os que O abandonaram, nem sequer condenou seus algozes. Do auge de Sua dor e vergonha, Ele ofereceu perdão aos que o maltratavam. Ele amou os que eram detestáveis; sem reservas e até o fim. Foi deste lugar que Ele ofereceu a mim e a você a oportunidade da vida eterna. Não de um paraíso barato cheio de facilidades e conforto, mas de um acesso a um lugar frequentado por pessoas como Ele.
O céu não é apenas um lugar onde Ele habita. É um lugar livre de egoísmo, de acusação e de vergonha. É um lugar para onde irão os que nesta vida optarem por pavimentar este caminho com renúncia e com a parceria e capacitação de um relacionamento construído com Ele. Seja em tempos de Covid-19 ou em tempos de prosperidade, Ele ocupa o centro de nossas escolhas e o fundamento de nossos valores. Precisamos dEle e de Seu sacrifício porque nenhum de nós é bom o suficiente, ou conseguiria vencer sem Sua ajuda. A verdadeira mensagem da cruz, comemorada na Páscoa, é um convite para que cada um de nós tome sua cruz e siga-O para um lugar de morte, onde a verdadeira vida brota.
“Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, produz muito fruto. Quem ama a sua vida perde-a; mas aquele que odeia a sua vida neste mundo preservá-la-á para a vida eterna. Se alguém me serve, siga-me, e, onde eu estou, ali estará também o meu servo. E, se alguém me servir, o Pai o honrará.” João 12:24-26
FELIZ PÁSCOA!!!