O silêncio que fala é aquele que extrai de nós aquilo que nos define. Ou seja, aquele que não depende das palavras, pois transcende o que elas são capazes de expressar. Diz-se que a intimidade de duas pessoas pode ser testada pela capacidade que elas possuem de estar em silêncio na companhia da outra. Existem momentos que não temos o que dizer, ou simplesmente escolhemos não verbalizar algo. O verdadeiro silêncio inicia de dentro para fora. Já que o maior ruído que ouvimos não é aquele produzido pelo trânsito ou pelos gritos de alguém. O ruído interno é o mais difícil de ser silenciado.
Ao longo de sua existência, a humanidade já viveu crises e já lidou com epidemias e desafios. Mas, possivelmente nenhuma delas foi tão globalizada e divulgada como a pandemia atual. Não se trata só de um convite ao isolamento social, trata-se de lidar com o silêncio. Pois, não foram só as ruas e o comércio que ficaram silenciosos, nosso interior precisou silenciar. Contrastando drasticamente com nossas casas, que ficaram naturalmente mais habitadas e barulhentas, ou seja, fomos encurralados.
Nos deparamos com o silenciar do consumo, da produção, da pressa e da rotina. Tudo parou de repente, e ficamos no vácuo. Pessoas de culturas tão distintas e únicas se uniram em um silêncio que invadiu o planeta. Nosso dia assumiu uma rotina diferente, pois, tivemos que nos reinventar. Para alguns foi natural e simples aquietar e se deixar moldar. Outros, contudo, se debateram e lidaram com conflitos internos e externos. Todos foram afetados, independente de classe social, crença ou cultura. O vírus infiltrou-se por nossos poros e não selecionou sua vítima por outro critério que não fosse estar viva.
Um inimigo comum
Mesmo os melhores filmes de ficção, não retrataram a realidade dura e inesperada que nos acometeu. O número de mortos aumentando a cada dia, enquanto lutamos contra um inimigo invisível, microscópico e real. Mas, algo curioso aconteceu, esse inimigo externo nos obrigou a permanecer contidos e, por isso, tivemos chance de avaliar com o que ocupamos nossos dias. Inegavelmente, cada um em alguma medida, passou a utilizar suas horas com novas atividades. Algumas muito prazerosas, outras nem tanto.
Mas, o fato inegável é que não nos foi dada opção de não fazer parte do momento ou de simplesmente ignorá-lo. Fomos arrastados para dentro de um túnel e não sabemos ao certo quando veremos a luz novamente. Mas, sem dúvida, não seremos mais os mesmos. Descobrimos como nos apoiar na tecnologia para diminuir distâncias. Passamos a valorizar e ter saudade de pequenas rotinas e encontros que foram subtraídos abruptamente do nosso cotidiano.
O olhar dos mais conscientes se voltou para o idoso, para o portador de comorbidades, para o frágil, que talvez não sobreviva ao terrível inimigo. Descobrimos que existe dentro de nós um senso comum que naturalmente nos leva a estender a mão. Sim, a solidariedade tímida e lentamente passou a fazer parte de nosso dia. Certamente o egoísmo e a ausência de empatia também se manifestou. Mas, se formos honestos, este egoísmo e individualismo sempre esteve ali, misturado com um pouco de quem somos.
O pequeno silêncio
Alguns gestos emocionaram e surpreenderam. Outros chocaram e nos deixaram estarrecidos. Mesmo na presença de um inimigo comum, muitas distrações e apelos atraíram o olhar de alguns, desviando-o do verdadeiro alvo. Porque, em um momento de crise, o bem e o mal do outro nos afeta. Este vírus deixou isto claro e devemos nos esforçar para não esquecer esta lição. Pois, ninguém vive sozinho, já que, somos parte de um todo, quer admitamos ou não.
Independentemente de qual seja a elaboração da narrativa, ela passa pela mente brilhante do cientista, do profissional da saúde, do psiquiatra e daquele que mal sabe assinar seu nome. Certamente o grau de instrução contribui na leitura ampla e completa das ramificações da crise. Contudo, não é capaz de extrair gestos de solidariedade maiores ou menores do que aqueles oriundos dos menos favorecidos. Já que nossas ações e iniciativas nascem no coração e não na mente.
Temos oportunidade de servir e de calar. Descobrimos que alguns se importam mais do que outros. E que outros se importam menos do que alguns. A lógica é uma só, não podemos oferecer o que não somos, porque, repartimos um pouco de nós em cada escolha que fazemos e seremos lembrados ou esquecidos por elas. Pois, não existe gesto menor ou maior quando o que está em jogo é a vida do outro. O que veio para superfície foi nossa essência. Nossos medos e bravura, assim como nossos ideais e nosso preconceito.
“No final, não nos lembraremos das palavras dos nossos inimigos, mas do silêncio dos nossos amigos.” Martin Luther King
Fomos todos nivelados
A crise nivelou-nos, enclausurando cada um dentro de um mundo particular, com o qual nem todos possuem familiaridade. Ou seja, descobrimos capacidades desconhecidas e fraquezas ignoradas. As várias correntes políticas apontam em direções distintas e nenhuma possui uma resposta convincente. Esta dificuldade não é do brasileiro apenas. É, também, do cidadão e do líder de qualquer governo. A economia foi sacudida e exigirá níveis de sacrifícios que ainda não podem ser mensurados. Mas, por mais que o cenário político e econômico seja desafiador e real, a resposta depende de cada um.
Precisamos mais do que uma vacina ou um medicamento que nos resgate. Nossa necessidade supera a da inexistência de leitos hospitalares e profissionais da saúde suficientemente treinados. Temos urgência de encontrar o sentido de nossa existência. Os dias mais longos, são seguidos por noites intermináveis. A vida deve ser mais do que alimentar-se, dormir, pagar contas e criar e educar filhos. O silêncio nos levou a fazer perguntas sobre o verdadeiro sentido da rotina passada. A volta ao normal, foi infectada por um novo olhar que questiona sadiamente o verdadeiro sentido da existência e dos vínculos.
Fomos sacudidos e não estamos totalmente recuperados ainda. Precisamos incorporar lentamente o aprendizado destes dias de confinamento. É impossível voltar a fazer escolhas com os mesmos parâmetros. É inconcebível permanecer em silêncio depois de descobrirmos que o outro importa e nos completa. A mudança precisa começar por cada um. Porque cada vida ceifada será sempre uma lembrança que é nossa obrigação viver intensamente. A vida é um dom de valor inestimável e não há nada externo que possa mudar isto. Nestas últimas semanas, lutamos conjuntamente por nossa vida e de nosso vizinho. Por isso, esta consciência deve permear nossas relações a partir de agora em medida diferente.