Existe muita diferença entre muros e limites, no que diz respeito ao comportamento humano. Pois, enquanto os limites são saudáveis e protegem nosso coração, muros são prisões que nos isolam do mundo e dos outros. Os limites são necessários, porque nem sempre as pessoas de nosso convívio nos conhecem de fato, por isso nos desrespeitam. Portanto, cabe a cada um traçar estas linhas divisórias que demarcam nosso território. São precisamente elas que separam o agradável do desagradável, o adequado do inadequado e o coerente do incoerente. Não é apropriado assumir que outros saibam a diferença. Pois, a realidade aponta na direção oposta.
O fato de sermos únicos e possuidores de uma estrutura de pensamento peculiar, torna a tarefa de estabelecer limites necessária. Pois, nem sempre o que nos agride ou incomoda está explícito e atinge nosso semelhante na mesma medida. Ou seja, não é incomum pessoas se incomodarem com o volume ou estilo de uma música, enquanto quem a ouve considera-a agradável. Não por acaso, em ambientes corporativos estabelecem-se regras de convívio. Uma certa etiqueta universal pretende preservar os ambientes profissionais e de uso público dos exageros. Perfumes podem perturbar, assim como hábitos específicos e o uso comumente do celular nem sempre é pertinente.
Limites não são impostos visando tolher a liberdade ou limitar o poder de expressão. Eles existem para possibilitar o convívio de um maior número de pessoas em ambientes públicos. Quando migramos a análise para o âmbito familiar ou pessoal as regras são as mesmas. Pois, dentro de uma mesma família existem pessoas com temperamentos e preferências distintas. Eles variam desde hábitos diurnos e noturnos, passam pelo paladar, pela escolha da profissão, etc. Portanto, ser capaz de estabelecer e obedecer limites é uma das premissas básicas de quem deseja se relacionar com pessoas.
“Sou vasto; contenho multidões.” Walt Whitman
Identificando os muros
Muros, no entanto, não contribuem para que laços sejam estreitados. Eles são uma espécie de barreira que pretende proteger quem os edifica. Mas tendem a isolar-nos do convívio com o outro. Eles possuem uma linguagem velada e igualmente poderosa para estabelecer limites. Mas, justamente porque não são claros e objetivos, eles mais atrapalham do que ajudam. Os ruídos na comunicação, em geral, possuem origem neste tipo de linguagem. Porque muros, depois de erguidos, influenciam nossa ótica, nublam nossa percepção. Dependendo da espessura, podem inclusive impossibilitar completamente o acesso.
Pessoas que erguem muros são pessoas que não sabem verbalizar seus limites. Frequentemente esperam que quem os rodeia seja capaz de ler as entrelinhas e ignoram a dificuldade e complexidade desta tarefa. Imaginam, erradamente, que o simples convívio se encarrega de deixar claro o que lhes desagrada e o que os emociona e conquista. Muros são erguidos por pessoas que assumem a defensiva e não lidam com naturalidade com conflitos e ajustes. Eles também impedem que trocas aconteçam e escondem dores e desapontamentos.
Somos seres relacionais e a busca do isolamento jamais será um antídoto eficiente contra a dor que nos causaram. Deixar de ter expectativas por causa das ofensas, retirando o time de campo, causa dor pior do que o desafio de apostar em um recomeço. A rigidez que nos impomos e com a qual julgamos os outros pode nos isolar atrás de muros diversos. A baixa autoestima, o medo e a frustração podem facilmente encontrar espaço nas sombras dos muros que edificamos. De fora para dentro a eliminação dos muros não é possível. Eles são erguidos em nosso interior e, por isso, precisam ser implodidos. A destruição é de dentro para fora.
A importância de contextualizar os conflitos
Limites são estabelecidos através da troca e de diálogos que objetivem estreitar laços. Relacionamentos estabelecidos com limites claros tendem a durar e a se solidificar. Mas, mesmo quando existe o desejo mútuo de eliminar as barreiras, alguns pequenos muros podem formar-se ou ser pré-existentes. Nosso cérebro possui a peculiaridade de não diferenciar traumas evidentes e grandes, daqueles que estão ocultos, e são pequenos e silenciosos. Ele classifica e registra tudo como ameaça, que somos incapazes de controlar. Estes traumas são acionados com gatilhos internos, que na maioria das vezes desconhecemos.
Por isso, testar a realidade de tais gatilhos é um dos passos importantes para eliminação de nossos muros. Podemos estar lidando com o conflito de identidades indesejadas e rótulos que recebemos. Ou seja, as pessoas estão nos codificando de forma equivocada, em parte por culpa nossa. Porque analisam nosso comportamento e nos rotulam por conta da visão que possuem de nossas motivações. O desconforto causado por estas identidades indesejadas, pode ser um incentivo para criação de muros. Quando de fato, deveria estimular o estabelecimento de limites; bem como a verbalização dos conflitos.
Brené Brown é uma estudiosa de comportamento, especializada em estudar a vergonha e a vulnerabilidade. Em seus estudos, ela chegou a conclusões surpreendentes sobre a origem de nossos conflitos. Embora sejamos únicos, muitos destes conflitos são universais.
“Um dos benefícios mais importantes de buscar o outro é aprender que as experiências que mais nos fazem sentir sós têm, na realidade, um caráter universal. Às vezes estamos chafurdando na vergonha e precisamos de ajuda; outras vezes somos aquelas que podem lançar a boia para quem está se afogando.” Brené Brown
Eliminando muros
A etimologia da palavra contextualizar está associada a juntar por meio de urdidura ou tecelagem. Portanto, ser capaz de contextualizar uma circunstância, envolve abrir-se para um confronto honesto e uma análise do que compõe a tecelagem de nossa postura. A identificação dos fios que se entrelaçam é o que permite que sejam desembaraçados. Contextualizar é o oposto de jogar a culpa e evitar responsabilidades. Portanto, não seremos eficientes em encontrar a verdade, se não formos capazes de reconhecer quais são os fios que se entrelaçam no emaranhado de nossas emoções.
A vergonha tem uma natureza isoladora e secreta. Ela se alimenta destes muros e não gosta de ser denunciada ou descoberta. Conhecimento é poder, e poder nunca diminui quando é compartilhado; apenas aumenta. Ou seja, a troca que nasce de relacionamentos saudáveis elimina muros e estabelece limites. Imaginar que possamos viver sem limites ou que possamos substituí-los por muros é um grande engano. Ter coragem de contextualizar é, também, saber ouvir. É se abrir para uma ideia que pode nos colocar em “xeque”. Pois, temos que partir do princípio que nem sempre temos 100% de razão.
Especialmente nos embates mais acirrados, chega-se a conclusão de que toda moeda tem dois lados. Porque a razão e as motivações por trás de um conflito não são unilaterais. As partes envolvidas contribuíram para que o ruído se instalasse na comunicação. Por isso, uma das partes precisa tomar a iniciativa de contextualizar, para poder resolver. Inegavelmente estes momentos podem ser doloridos e, às vezes, aumentam o dano, especialmente quando acessamos feridas antigas. Portanto, não temos garantias de que solucionaremos a questão. Mas, avançamos no autoconhecimento e extraímos lições preciosas destes momentos.
Culpa e vergonha
A vergonha é nociva e destrutiva em todas as suas nuances. Ela não acrescenta ou colabora na formação de quem somos. A culpa, no entanto, pode nos levar a conclusões e, dependendo de como a percebemos, tende a nos conduzir para um lugar de arrependimento. A culpa lida com o que fizemos e consideramos errado. A vergonha age sobre quem somos. A culpa analisa e condena o ato ou a escolha. A vergonha condena e mutila a pessoa que errou. Portanto, a grande diferença entre quem erra está no fato de sentir vergonha ou culpa.
Por isso, quem sente culpa tenta reverter a situação, porque entende que pode ser revertida ou consertada. Está disposto a perdoar e pedir perdão. O cerne da questão é aprender a lição de que somos responsáveis pelas consequências de nossos atos, e é nossa a escolha de lidar com elas. Mas, quem escolhe acolher a vergonha, imputará uma carga pesada e mortal sobre si e sobre o outro. A pessoa que lida com vergonha também promove a vergonha em seus relacionamentos, mesmo de forma inconsciente. Pois, ela age no nosso valor como ser humano e nos faz pensar que somos daquele jeito.
É, portanto, uma ótica destrutiva e distorcida de nosso potencial e elimina e limita nossa capacidade de superação. A vergonha é vivenciada por quem constrói muros e não limites. A decisão de eliminar muros é diretamente proporcional à nossa disposição de lidar com a vergonha, tendo coragem de reconhece-la. Já que, a vergonha é um dos alicerces de nossos muros e muitas vezes nos impede de expressar o que nos incomoda ou agride. No entanto, a culpa pode ser benéfica quando desacompanhada da vergonha. Pois, tendemos a consertar nossas falhas, quando desvinculamos o ato de nossa identidade.
“Vergonha é o que sinto quando me vejo pelos olhos do outro.” Brené Brown
Não somos um erro, cometemos erros
A vergonha nos leva a pensar que somos um erro, quando na verdade somos falhos e, por isso, cometemos erros. Quando estabelecemos limites, partimos da premissa que ninguém é um erro, mas admitimos que pode errar. Ao construirmos muros, rotulamos as pessoas e queremos nos isentar de lidar com quem achamos que são. Mas, na verdade, não temos direito de rotulá-las a partir de um equívoco. Cada pessoa é mais do que o conjunto de erros que comete.
Além disso, quando adotam esta prática conosco não ficamos confortáveis. Pois, o grande engano reside exatamente no fato de classificarmos os erros como parte integrante do caráter de alguém. Boa parte desta ótica está apoiada em orgulho e na pretensão de que não erramos. Portanto, consideramo-nos melhores do que aqueles que classificamos como “um erro”. Pessoas erram, mas não são um erro. Cada um é dotado de qualidades e pontos fortes e fracos. Precisamos aprender a nos relacionar com o melhor das pessoas.
Construir muros ao invés de pontes e ter dificuldade de lidar e estabelecer limites são características de imaturidade. Existem muitas pessoas com trajetórias de muito sucesso, que nunca lidaram com suas emoções. O rastro que deixam é de pessoas feridas e que sentem-se usadas e descartadas. Os relacionamentos que conquistamos ao longo de nossa vida são o maior tesouro que temos. Derrubar muros e aprender a estabelecer limites é a receita que, quando seguida, agrega significado às nossas conquistas.